domingo, 23 de março de 2008

Guerrinhas corporativas e de títulos académicos

Em resposta a um texto do Bastonário da Ordem dos Engenheiros (OE) sobre a necessidade de ser bem clarificada a proposta de Lei 116/X, publicado no jornal Sol, vêm desta vez no jornal Público as Presidentes dos Conselhos Directivos Regionais do Norte e Sul da Ordem dos Arquitectos (OA), respectivamente Arquitectas Teresa Novais e Leonor Cintra, acompanhadas dos cabeças de lista das três listas concorrentes às eleições da OA, tecer considerações menos agradáveis relativamente ao Bastonário da OE, chamando-lhe implicitamente «burro» por alegadamente "demonstrar um desconhecimento da prática profissional de arquitectura e sua evolução, não entendendo a importância cultural e operativa de uma actividade profissional estratégica para o desenvolvimento do país".
Anda toda a argumentação à volta de um decreto-lei, nº 73 de 1973, pelo qual os engenheiros foram autorizados a assinar projectos de arquitectura, em virtude do reduzido número de arquitectos de então.
Efectivamente, tal solução alegadamente temporária prolongou-se até aos nossos dias como é hábito neste País !
Durante todo este tempo
, com engenheiros a sério, engenheiros que se dizem «técnicos» (como se os anteriores fossem teóricos !), arquitectos a sério não tanto, predominou aquilo a que nos habituámos a chamar de «arquitectura caixote».
Este tipo de arquitectura
, muita das vezes projectada por simples "desenhadores projectistas" e obedecendo aos padrões estéticos e funcionais dos "mestres de obra", foi sancionada pela assinatura de favor (paga, claro !) quer de engenheiros quer de arquitectos sem ética profissional.
Embora se trate igualmente de um ilícito criminal, veja-se como agora se «branqueou» totalmente a questão suscitada pelos projectos que o Sr José Sócrates terá assinado, com o argumento de que se "trata de uma prática comum" e por conseguinte normal !!!
Como se fosse normal roubarmos porque vivemos num País de ladrões...
E até parece que tudo se resume a uma guerrinha de 43.000 engenheiros contra 16.000 arquitectos, ou vice-versa.
Esquecem-se os arguentes, de um lado e de outro, de coisas básicas que é preciso não deixar em claro e lembrar, nomeadamente:
  • Que o início do «boom» da construção coincidiu efectivamente com o advento dos anos 70, altura em que a formação de arquitectos era incipiente. Face ao mercado de trabalho de então, largas centenas de arquitectos disstribuiam-se entre a docência de cadeiras de desenho e geometria descritiva no secundário e o trabalho de tarefeiro como desenhador-projectista nos poucos gabinetes conceituados à época;
  • Entretanto, a formação de engenheiros desenvolvia-se assimètricamente, com predominância da engenharia «civil» sobre todos os outros ramos, por ser este aquele que permitiria uma maior liberdade e abrangência de acção em todos os locais, privados e públicos;
  • A falta de ligação do ensino superior à indústria e vice versa era total !
  • Antes de 25 de Abril de 1974, e no que se refere ao tipo de ensino após a então 4ª classe (actual 4º ano do ensino básico), os alunos podiam enveredar por duas vias - liceal e profissional, a primeira com um cariz mais teórico com vista a uma sequência universitária e a segunda com um cariz mais prático que lhes permitia terminar esta fase da sua formação com uma habilitação profissional concreta. Estes últimos poderiam então, caso assim o pretendessem, inscrever-se nos chamados Institutos Técnicos/Comercial e ao fim de três anos ficavam habilitados com um bacharelato e adquirindo o título académico de "Agente Técnico ...";
  • O 25 de Abril de 1974 veio finalmente trazer a liberdade e a esperança de um País novo, mas na realidade a palavra «liberdade», na sua imensa importância, não se concretizou em liberdade para aproveitar a excepcional oportunidade de mudança que aí se encerra mas sim para a assumpção de que «liberdade» se traduz em fazermos o que queremos, quando queremos e da maneira que queremos, passando por cima de tudo e todos se para isso fôr preciso;
  • Tempos obscuros os do PREC, em que as avaliações dos alunos e as suas licenciaturas eram expressas não por notas mas sim por "apto", os Agentes Técnicos de ... que exigiram passar a ser, por exemplo, Engenheiros Técnicos, afectando para além de outras, a qualidade do ensino de ambas as formações - engenharia e arquitectura;
  • E é como Engenheiro Técnico Civil que o Sr José Sócrates assina vários projectos «de favor» !
  • E são os Agentes Técnicos de ... que invadem as empresas públicas e as nacionalizadas, aí se mantendo durante mais de duas décadas e até chefiando ao longo desse tempo Licenciados com mestrado, alguns deles com funções docentes em reconhecidas universidades. É um exemplo disso a então Direcção de Manutenção e Engenharia da TAP-Portugal (Ex TAP-Transportes Aéreos Portugueses), totalmente dominada pelos mesmos !
  • E a falta de ligação do ensino superior à indústria e vice versa continua a ser total !
  • E parece que nestas guerrinhas corporativas ambas as instituições se estão a esquecer de que, tal como noutras, a actividade da construção deve ser uma actividade multidisciplinar coordenada, sem heróis de nenhum dos lados mas sim dentro da maior colaboração e assumpção das respectivas responsabilidades. Nela não deve haver lugar a pretensões individualistas de autoria com direito a placa de bronze afixada no «caixote», como já tenho visto em relação a alguns arquitectos;
  • ARQUITECTOS com letra grande, tais como Siza ou Portas nunca necessitaram de assinar em chapa as suas obras !
  • Que a OA pugne pela melhoria do ensino da arquitectura em Portugal, nomeadamente no que se refere aos conhecimentos extra arquitectura que deverão conhecer mìnimamente, tais como noções de balanço térmico na construção, resistência dos materiais, etc.. Senão como é que se pode admitir que um arquitecto possa ser o «técnico responsável» de uma obra, como actualmente se verifica ? Se lhe faltarem as noções de balanço térmico a optimizar nos seus projectos como é que se pode considerar equilibrado um projecto de arquitectura que, se puder evitá-la, exija uma compensação térmica exterior consumidora de energia adicional ? E como pode um arquitecto acompanhar a betonização de uma estrutura de uma construção como «responsável técnico» se desconhecer de todo a razão para o tipo de betão a utilizar e a função e disposição do ferro que a compõe ? É que uma construção, ao contrário do que tenho verificado com alguns arquitectos, não se situa no estirador mas sim no terreno !
  • Que a OE pugne pela melhoria do ensino da engenharia em Portugal, nomeadamente agora que o processo de Bolonha está a provocar enormes dificuldades a nível de adaptação e não deixe degradar-se o excelente ensino das universidades de referência do País. E que pugne pelo papel essencial dos engenheiros em todo o processo de construção, com todos os ramos envolvidos, deixando aos arquitectos o papel conceptualista que lhes compete.

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